Publicações

Democratização do Crédito Versus a Interferência Judicial: Uma Reflexão Sobre a Proibição de Empréstimos com Garantia de Celular

Por Caio Fava Focaccia e Rafaela Tertuliano Ferreira

O judiciário, recentemente, proibiu empresas de crédito de firmar contrato de empréstimo com cláusula que exija como garantia o celular do consumidor e o bloqueio de suas funcionalidades em caso de inadimplemento ou mora. Apesar de bem-intencionada, essa decisão parece contraproducente em um ambiente onde a inclusão financeira e o acesso ao crédito se tornam cada vez mais importantes.

Importante entender que essa garantia é particularmente relevante para aqueles que não possuem imóvel, veículo ou patrimônio para dar em garantia. Esses consumidores podem obter empréstimos com taxas de juros menores graças à opção de usar seu celular como garantia, um objeto de valor considerável em nossa sociedade digital. Ao eliminar essa opção, o Judiciário pode estar criando obstáculos desnecessários para a democratização do crédito.

Além disso, a decisão parece contradizer as tendências modernas de tornar o crédito mais acessível. À medida que avançamos para uma economia cada vez mais digital, novas formas de garantia, como dispositivos móveis, deveriam ser exploradas, e não proibidas. Isso é especialmente verdadeiro no Brasil, onde a inclusão financeira ainda é um desafio significativo e o acesso ao crédito pode ser uma ferramenta poderosa para reduzir a desigualdade.

Outro ponto preocupante dessa decisão é a interferência do Judiciário em uma relação contratual entre particulares. É uma prerrogativa do consumidor escolher obter um empréstimo com juros menores, oferecendo seu celular ou aplicativo de celular como garantia. Ao interferir nessa escolha, o Judiciário está, na verdade, limitando a liberdade dos indivíduos de fazerem acordos contratuais.

A decisão, embora tenha a intenção de proteger os direitos de um suposto consumidor vulnerável, está inadvertidamente privando-o do direito de propriedade. O direito à propriedade é um pilar fundamental do direito civil e implica a capacidade de usar, usufruir e dispor de seus bens, incluindo a decisão de usá-los como garantia em uma transação financeira.

Contrariamente ao que vem sendo interpretado pelo judiciário, essa modalidade de garantia já possui previsão no nosso ordenamento jurídico. Ela se configura como penhor ou alienação fiduciária de bem móvel, similar ao que é praticado com joias e relógios, por exemplo – adaptado à realidade moderna.

Vale lembrar também que o acesso ao crédito, especialmente para os mais vulneráveis, pode ser uma ferramenta poderosa para a mobilidade social e o empoderamento econômico. Ao limitar as opções de garantia disponíveis para esses indivíduos, o Judiciário pode, paradoxalmente, estar restringindo sua capacidade de melhorar suas condições financeiras.

Assim, embora seja essencial proteger os consumidores contra práticas abusivas, é igualmente importante não restringir sua liberdade e autonomia. Portanto, o foco deveria ser garantir que os consumidores estejam bem-informados sobre as implicações de suas escolhas, em vez de proibir certas práticas de crédito. Dessa forma, podemos avançar em direção a um ambiente de crédito mais inclusivo e igualitário.

Com efeito, existem startups no setor que, movidas por uma intenção positiva, desenvolveram seus modelos de negócios visando o benefício dos consumidores, ao invés de seu prejuízo. Estas empresas, por exemplo, se abstêm de aceitar como garantia celulares que sejam utilizados para fins profissionais. Em caso de atraso no pagamento de uma parcela, essas companhias não impõem juros ou multas, evitando, assim, o efeito bola de neve na dívida do consumidor. Em vez disso, elas optam por bloquear apenas determinadas funcionalidades e aplicativos – como os de redes sociais – mantendo o restante do dispositivo em pleno funcionamento, com acesso à internet e capacidade para receber e efetuar chamadas. Além disso, proporcionam ao consumidor a alternativa de entregar o aparelho para saldar a dívida.

Dito isso,  é imprescindível que este tema seja analisado com a devida cautela e consideração. Claro que a proibição de práticas abusivas por parte de empresas de crédito é um imperativo, e essas ações devem ser combatidas vigorosamente. No entanto, impor uma proibição genérica sobre este serviço pode inadvertidamente prejudicar empresas de crédito que estão trabalhando de forma responsável e justa para beneficiar os consumidores que precisam de acesso a crédito com taxas de juros acessíveis.

Portanto, ao invés de serem objeto de proibição por parte do Judiciário, estas práticas devem ser devidamente regulamentadas pelo Banco Central. Como órgão com a expertise técnica necessária e a autoridade regulatória apropriada, o Banco Central é mais bem equipado para avaliar e gerenciar os riscos e benefícios associados a estas práticas de crédito. Através de uma regulamentação efetiva e justa, seria possível proteger os consumidores de práticas abusivas, enquanto se promove a inclusão financeira e se garante o acesso a crédito com taxas de juros acessíveis para um maior número de pessoas.

Autores do artigo:

CAIO FAVA FOCACCIA, é sócio titular do escritório Licastro e Focaccia Advogados. Atua nas áreas de Contencioso Cível, Comercial, Imobiliário, Arbitragem, Consumidor e Contratos Empresariais. Bacharel em Direito pela Fundação Armando Álvares Penteado (Faap) de São Paulo, 2007. Pós-graduado em Processo Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), 2011. Especialista em Contratos Comerciais pelo Instituto Internacional de Ciências Sociais, 2013. LLM (Master of Laws) em Direito Societário pelo Insper de São Paulo, 2017. Membro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Seção de São Paulo Membro da Associação dos Advogados de São Paulo (AASP)

RAFAELA TERTULIANO FERREIRA é advogada associada no escritório Licastro e Focaccia Advogados. Acumula experiência nas áreas de Contencioso Cível, Direito do Consumidor e Tributário, com passagens pelo Ministério Público Federal, na Defensoria Pública do Estado de São Paulo e em escritórios de advocacia. Foi oradora da Turma de Direito da Universidade Guarulhos – Formandos 2018. Bacharel em Direito pela Universidade Guarulhos, 2018. Pós-Graduada em Direito Penal e Criminologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), 2020.

Democratização do Crédito Versus a Interferência Judicial: Uma Reflexão Sobre a Proibição de Empréstimos com Garantia de Celular

plugins premium WordPress